terça-feira, 4 de novembro de 2008

Judas Iscariot - The Cold Earth Slept Below...

Judas Iscariot - The Cold Earth Slept Below...

Introdução
Em 1995, a sigla USBM, a ser utilizada, seria uma vazia agregação alfabética sem qualquer consubstanciação musical. Não apenas enquanto ideia colectiva de hipotético movimento musical, mas também porque encontrar, no início dos anos 90, bandas norte-americanas a praticar Black Metal (sem influências exógenas demasiado evidentes, nomeadamente de Thrash e Death Metal) era uma tarefa exequível - desde os anos 80 existiam bandas pequenas com um som ainda mais sujo que Venom como N.M.E., por exemplo - mas extremamente complicada.

Há a famosa imagem de Varg Vikernes a usar uma t-shirt de Von no julgamento do homicídio de Euronymous e de facto esta era uma das poucas bandas a praticar este estilo, cujo contexto e origem, é demarcadamente europeu. No entanto, mesmo Von tinha um som ligeiramente diferente, muito mais ligado ligado à brutalidade e velocidade e menos à atmosfera (principal característica distintiva do Black Metal que se fazia na Europa).
Só mais tarde é que surgem bandas como Krieg (mais tarde e não surpreendentemente membros desta banda haveriam de tocar como músicos convidados em JI) e Black Funeral a praticarem um estilo próximo do ia sendo feito na Noruega. No entanto, tanto Krieg como Black Funeral só surgem em 1995 e 1993, respectivamente, isto é, um pouco mais tarde que JI que inicia as suas actividades em 1992.

Assim sendo, The Cold Earth Slept Below... surge como uma das primeiras demonstrações de (puro) BM norte-americano a ter alguma relevância na cena mundial. Fruto da insistência do fundador e único membro fixo da banda Andrew Jay Harris, mais conhecido pelo seu pseudónimo Akhenaten. À semelhança de grandes nomes do estilo, Judas Iscariot foi predominantemente uma "one-man band". O uso do pretérito deve-se ao facto de JI ter cessado as suas actividades em 2002... mais concretamente a 25 de Agosto desse mesmo ano. Neste caso o dia e mês são bastante importantes para perceber a ideologia por detrás do projecto: Judas Iscariot acabou 102 anos depois da morte do filósofo que mais influenciou o seu mentor, ou seja, Friedrich Nietzsche.

Indivíduo com formação académica na área da Sociologia, Harris sempre se pautou pela integridade que incutida ao projecto, quer a nível ideológico (com persistentes ataques niilistas às religiões organizadas sendo o Cristianismo o foco particular), quer a nível artístico. Exemplo disso é a declaração que explica o fim da banda após 10 anos em actividade.
The Cold Earth Slept Below... mostra o lado mais primitivo e frio da perseverante luta de Akhenaten contra a moral cristã através da sistemática desconstrução niilista aqui traduzida em ódio sonoro.



Alinhamento
01 - Damned Below Judas
02 - Wrath
03 - Babylon
04 - The Cold Earth Slept Below
05 - Midnight Frost
06 - Ye Blessed Creatures
07 - Reign
08 - Fidelity
09 - Nietzsche

Ano 1996

Editora Moribund Records

Faixa Favorita 04 - The Cold Earth Slept Below

Género Black Metal

País EUA

Banda
Akhenaten (Andrew Jay Harris) - Todos os Instrumentos e Voz


Review
Por motivos de honestidade analítica há que dizer logo no início e muito claramente que o Black Metal de Judas Iscariot não é exactamente o que poderíamos chamar de singular. Mesmo atendendo ao ano em que foi lançado, The Cold Earth Slept Below... já denota muitas influências do que outros nomes tinham feito antes.
Neste aspecto surge, de forma algo natural, a referência a Darkthrone. Em 1996 já tinham sido lançados trabalhos como o A Blaze In The Northern Sky e Transilvanian Hunger, e este trabalho de JI vai buscar vários elementos a esses dois marcos do Black Metal moderno.

Não obstante o primeiro álbum de estúdio de Judas Iscariot caminhar em terreno já conhecido, Akhenaten consegue fazer uma interpretação bastante interessante do que havia sido desbravado até então. Não havendo propriamente inovação a nível musical (nem é esse o objectivo de Harris), a unicidade de TCESB advém da atmosfera transmitida. O sentimento niilista é muito forte, não só devido ao conteúdo lírico ou à abordagem vocal, mas porque toda a obscuridade do álbum remete para uma ideia de profundo anti-conformismo para com o mundo envolvente. Se existem semelhanças musicais mais ou menos evidentes com nomes predecessores a JI (Darkthrone, por exemplo), a atmosfera criada é bastante única, quer pelo extremismo da mesma, quer pela forma como as variações (não sendo exactamente original, é um trabalho que varia bastante embora sempre dentro do espectro do Black Metal) vão mantendo sempre o mesmo nível de intensidade.

A música de Judas Iscariot (não somente neste álbum) reveste-se de uma complexidade conceptual que contrasta com a abordagem puramente musical que pode ser ouvida em The Cold Earth Slept Below que é substancialmente mais simples. Está claro de ver que a intenção de Akhenaten não era fazer um álbum tecnicamente complexo, pelo que a questão não se põe em termos de capacidade, mas é interessante olhá-la numa perspectiva contrastante que maximiza o efeito pretendido.
Abordando a produção do álbum é possível vislumbrar esta simbiose: o conteúdo filosófico inerente é na sua génese extremo, quer em complexidade quer em valores (ou se se preferir, na falta dos mesmos...) e a produção bastante minimalista e crua acentua esta mesma atmosfera, fazendo com que o trabalho seja fiel retratador a escrita aforística e poderosa de Nietzsche, a grande inspiração ideológica do projecto. O mundo das ideias (complexo) e o mundo musical (simples) unem-se sob o signo do extremismo da mensagem: a comunicação é cruamente poderosa mas a mensagem assume-se como ambiciosamente complexa.

A produção rude e (propositadamente) pouco "trabalhada" (ou trabalhada exactamente para parecer pouco cuidada...) não mascara algumas passagens mais turbulentas no que diz respeito a um elemento do álbum: a bateria. Se na maioria das vezes a repetição ajuda apenas a manter a atmosfera do álbum, quando se dão algumas passagens mais velozes ou há uma tentativa de imprimir outras dinâmicas, nota-se alguma falta de experiência e habilidade. Não sendo expectável (ou mesmo recomendável) um trabalho de grande perfeccionismo, algumas falhas notam-se um pouco mais do que o devido. Até neste caso (que não é positivo, diga-se claramente) a integridade musical de Harris é denotada, sendo que seria porventura mais "fácil" substituir a bateria real por uma qualquer caixa de ritmos.
No entanto, as pequenas (mas evidentes) falhas na bateria não afectam todo o sentimento geral que o álbum emana pelo que não deve ser visto como algo castrador da fluidez do trabalho. Até porque a bateria surge apenas, como já tinha referido, para dar relevo à atmosfera violenta e odioso de The Cold Earth Slept Below e nesse campo não se podem apontar quaisquer lacunas.

Num plano de bastante maior destaque que a bateria (e que o baixo que é inaudível) encontram-se as estridentes e cortantes guitarras que atravessam todo o álbum. O trabalho é maioritariamente assente em riffs gélidos repetidos várias vezes durante as musicas. O trabalho é simples, mas é possível escutar uma grande variedade no mesmo: existem momentos de Black Metal mais furioso (remanescente do trabalho de Darkthrone em Transilvanian Hunger) como é o caso de Damned Below Judas; passagens mais lentas e com riffs épicos, algo que pode ser encontrado na faixa-título; melodias atmosféricas com um efeito altamente hipnotizante que pode ser ouvidas, por exemplo em Babylon.
O interessante neste aspecto é o facto de quase todas as músicas apresentarem esta diversidade. Não pela mesma ordem nem seguindo sempre o mesmo padrão, o que tornaria a escuta monótona rapidamente, mas várias faixas têm as variações descritas e apesar de pintarem uma paisagem bastante monocromática, fazem-no de uma maneira bastante interessante. Fidelity - uma das melhores faixas do álbum, diga-se - é um dos bons exemplos deste aspecto que The Cold Earth Slept Below apresenta, indo dos caóticos às melodias soturnas e mais lentas.

Com as guitarras a conduzir, o álbum vai-se movimentando em diversos campos dentro do Black Metal com o objectivo de criar uma atmosfera desoladora e vazia em consonância com a filosofia niilista seguida por Akhenaten, onde se constata a falta de valor ou propósito da existência (humana). De facto, esse é o sentimento que enche e percorre o álbum. Mesmo não sendo possível o acesso às letras (tudo o que se pode perceber é através de audição directa), o sentimento de invasão por parte de um enorme vácuo é a mais perceptível característica dos quase quarenta e quatro minutos que compõe o álbum.
Contudo, não se pense que este efeito é atingido calmamente. Como mencionado, existem momentos mais lentos e arrastados, mas a incursão pelo lado mais rápido e agressivo do Black Metal está bem presente e o ódio surge como transporte precisamente para a desolação. Atente-se logo ao início do trabalho com Damned Below Judas onde a primeira palavra vociferada é precisamente: Hatred. Uma declaração de intenções bem directa logo nos primeiros segundos do álbum.

Para completar o ambiente geral do álbum, temos a voz de Harris. As vocalizações são bastante típicas do género (arriscaria até dizer que este é o padrão de voz para o Black Metal moderno): guturais poderosos que, por se encontrarem um pouco enterrados na produção, têm um som abafado e distante, o que enfatiza a atmosfera odiosa e cinzenta do álbum. Não sendo exactamente originais (são bastante na linha do que Nocturno Culto já fazia em 1996), as vocalizações neste primeiro álbum de Judas Iscariot ganham dimensão e destaque muito maior devido à sinceridade por emanada por Akhenaten e pela forma como se encaixam nos riffs arrastados (os vocais resultam melhor nas partes menos rápidas das músicas), criando uma ideia de narração filosófica. A última faixa do álbum, que tem o sugestivo nome de Nietzche, é o melhor exemplo do que acabo de referir, nomeadamente devido à entoação quase profética que os vocais assumem.

Todo o trabalho é bastante homogéneo no seu todo. As variações que referi surgem sobretudo dentro de cada faixa, mas a atmosfera de faixa para faixa é sensivelmente a mesma. Não se esperava outra coisa e é precisamente este envolvimento que o trabalho tem que o torna interessante.
Como já foi amplamente exposto, não se trata de um trabalho original em termos estritamente musicais (embora hoje possa soar ainda menos uma vez que muitas bandas trilharam o mesmo caminho que os antecessores de JI ou do próprio projecto norte-americano) pelo que vale fundamentalmente pela qualidade imprimida ao álbum.
Neste caso em concreto, a mais valia do álbum é conseguir manter a qualidade e interesse por dois motivos: por um lado, há uma envolvência geral muito bem conseguida e que consegue transmitir na perfeição o sentimento niilista que Harris pretende; por outro lado, existem vários momentos (sejam riffs arrepiantes, passagens melódicas de cortar a respiração ou simplesmente instantes de Black Metal executado com o sentimento certo) que por si só se tornam verdadeiros hinos e o melhor é que há muitas alturas em que isso acontece.
Os momentos arrastados e tenebrosos de Damned Below Judas ou Fidelity, os riffs bastante inspirados em Babylon ou no riff principal de The Cold Earth Slept Below e ainda a hipnótica e longa viagem de Nietzsche (tema que de alguma forma se torna no paradigma máximo do trabalho e porventura do próprio projecto), são (por si só) tudo fantásticas demonstrações de como deve ser feito BM, mas quando integrados num álbum com a capacidade de proporcionar um efeito de abstracção exterior para uma maior exploração individualista, tornam-se ainda melhores e transcendem a qualidade intrínseca que cada uma dessas demonstrações teria já por si só.

Conclusão
The Cold Earth Slept Below não é um álbum fundador do género em que se insere, mas é sem dúvida único na sua abordagem temática ao género. Isto confere-lhe uma atmosfera e força únicas, que tornam o primeiro álbum de Judas Iscariot um importante contributo para cimentar o que o Black Metal tem de melhor.
Além disso, foi um começo estrondoso para um projecto que se tornaria numa instituição bastante respeitada no meio em que estava musicalmente inserida, ao longo dos anos em que se manteve activo.

Não é um trabalho de assimilação fácil. Não o pretende ser e isso também é um dos seus pontos positivos. É uma honesta transposição de ideais ditos extremos para música de índole semelhante. Uma recriação poderosa de ideais niilista consubstanciada em três quartos de hora de puro e negro Black Metal. O facto de querer ser "apenas" um trabalho honesto neste campo não o torna menos louvável e admirável, muito pelo contrário.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Corpus Christii - Tormented Belief

Corpus Christii - Tormented Belief

Introdução
Quando em 2007, Nocturnus Horrendus finalizou a trilogia "Tormented" fechou-se um ciclo que representa provavelmente a melhor sequência de álbuns dentro das criações feitas no Black Metal nacional.

Se quisermos olhar para a evolução temático-filosófica desta mesma trilogia, podemos conceber uma ascensão que começa na mais desesperada das agonias e vai de alguma forma caminhando em direcção à luz do conhecimento e da perfeição (a própria ideologia do mentor de Corpus Christii ajuda a entender a procura por este último aspecto).

O início desta "viagem" deu-se com o mais negro e doentio álbum da trilogia: Tormented Belief. Conforme é dito por Nocturnus Horrendus, o álbum surge na mais conturbada altura da vida do mentor de Corpus Christii e dado o cariz (muito) pessoal do projecto (especialmente nesta trilogia) é natural que todas as perturbações vividas nessa altura por NH sejam transpostas para o álbum... em forma de dolorosas e odiosas ondas sonoras.

Tormented Belief marca igualmente uma viragem no som de CC (que acompanha a própria mudança de conceitos abordados), tornando o som "melancolicamente" mais refinado (embora mantendo a agressão e brutalidade dos trabalhos anteriores), com especial atenção à composição dos temas de forma a conferir aos mesmos uma carga negativa e emocional maior, factor que enriquece (bastante) a atmosfera global do trabalho.



Alinhamento
1. Melancholy Beginning
2. Forgotten Dead Crow
3. My Blood In Your Hands
4. Arising From The Ashes
5. Devouring Your Essence
6. Being As One With Hatred
7. Me, The Hanged One
8. Constant Suffering

Ano 2003

Editora Nightmare Productions

Faixa Favorita 8. Constant Suffering

Género Black Metal

País Portugal

Banda
Nocturnus Horrendus - Baixo, Guitarras & Voz
Necromorbus - Bateria



Review
O cenário de mudança em Tormented Belief começa logo a ser desenhado na própria morfologia da banda no álbum. Pela primeira vez, Corpus Christii tem em estúdio um baterista real (substituindo a habitual drum machine que vinha sendo utilizada nos álbuns anteriores).
O baterista escolhido foi Necromorbus, prolífero músico da cena Black Metal europeia e de reconhecidos (trabalhou, entre outros, com Watain, In Aeternum e Funeral Mist).

Começando precisamente por este (primeiro) factor de mudança, Necromorbus faz um trabalho bastante competente a dar uma furiosa alma rítmica a todo o disco. Os ganhos são por demais evidentes, sobretudo porque a maior variedade do álbum face aos anteriores exige uma melhor articulação entre os momentos mais rápidos e as partes mais lentas, algo que Necromorbus faz com bastante eficácia (vejam-se, a título de exemplo, as mudanças de ritmo em Melancholy Beginning).
Além do mais, um trabalho com uma abordagem tão "humana" (do ponto de vista da exploração dos aspectos mais negativos da espécie, entenda-se), não se compadecia com a limitação maquinal de uma drum machine, pelo que, além de um factor de maior interesse, era algo absolutamente necessário para que a globalidade do álbum não sofresse um duro revés.

No entanto, apesar do bom desempenho de Necromorbus, a principal personalidade do álbum (em toda a plenitude da afirmação) é, naturalmente, Nocturnus Horrendus. É da mente de NH que o álbum toma forma, se concretiza e, claro, se torna verdadeiramente interessante.
Quer sejam os riffs melancólicos, os vocais tresloucados de sofrimento ou a conceptualização da dor em forma de música (as letras aqui desempenham um papel fundamental), a verdade é que Tormented Belief sai directamente do consciente de NH.

Não se trata de um expurgar de polémicas, mas de algo mais (ao contrário do que muitos dizem e disso fazem uma estúpida bandeira para criticar CC). Tormented Belief, pela mão de NH é um cruel exercício misantrópico, onde a criação artística é uma extensão do interior do compositor. Claro que isto acontece inúmeras vezes, em inúmeros álbuns, mas raros são as bandas que conseguem fazê-lo de forma interessante, sem entrar no campo da intransmissibilidade ou de cair nos clichés fáceis que são apanágio das tentativas frustradas do relato de algo tão pessoal.

É evidente que devido a ser um álbum tão particular, ninguém está em condições de compreender totalmente o que é que se pretende transmitir, mas é possível absorver a atmosfera melancólica, o ódio, a agonia e todo um turbilhão de emoções carregadas de negatividade. Nestes aspectos pode, de facto, haver uma identificação (ou dar-se o fenómeno contrário, obviamente) de quem ouve o álbum e surgir um interesse redobrado pelo trabalho. No meu caso, isto é um dos principais factores que me faz ouvir Tormented Belief bastantes vezes...

Claro que tudo isto seria completamente inútil se não fosse suportado musicalmente por um trabalho poderoso e esmagador, como nos é apresentado em Tormented Belief.
Neste campo, de destacar a produção, que não sendo cristalina, constrói um ambiente claustrofóbico e perfeito para o género em questão. Nota-se também aqui uma notória mudança em relação ao trabalho anterior da banda.

Instrumentalmente falando há um destaque natural para as guitarras e consequentemente para os riffs. O trabalho de guitarra do álbum acompanha - obviamente - todo o ambiente geral do álbum, pelo que se podem esperar riffs a transbordar de melancolia, raiva e ódio.
Não sendo um trabalho de guitarra complexo, do ponto de vista técnico (como Rising, por exemplo), a sobreposição de guitarras, a forma como tudo está colocado no sítio certo de forma a tornar a experiência auditiva (ainda) mais agonizante revelam uma das grandes virtudes deste álbum: as qualidades de composição que são por demais evidentes em Tormented Belief.
O clima de mudança (prefiro o termo "mudança" ao termo "evolução" em relação a CC devido ao carácter qualitativo que o segundo muitas vezes encerra) é também evidente, uma vez que o surgimento de várias "camadas" de riffs contrasta claramente com o trabalho mais directo dos álbuns anteriores.

No entanto, e apesar de tudo, há algo que se consegue sobrepor aos aspectos que positivamente destaquei anteriormente: a voz e a lírica de Nocturnus Horrendus.
Claro que a compreensão (ou talvez a assimilação individual que cada um faz) das emoções e dos estados de espírito que os temas (e o álbum em geral) transmitem passam muito pela leitura das letras que NH vai soltando odiosamente durante todo o disco.
Isto é algo que acontece em quase todos os álbuns, no entanto, neste caso (e pela própria produção do álbum que põe em destaque a voz) torna-se em algo único, porque não há um verdadeiro trabalho vocal da parte de Nocturnus... existe sim um soltar animalesco de momentos homicidas, misantrópicos, demoníacos (e provavelmente dos demónios pessoais do vocalista...): uma enorme dimensão de viscerais vocalizações que consubstanciam toda a negritude adjacente a Tormented Belief.

O trabalho vocal é perfeitamente complementado com uma lírica que lida com uma série de sentimentos de obscuros e perversos que vão desde assassínios, puro ódio e a abordagem da morte como a libertação única de todo o sofrimento.
Este último aspecto leva-nos a algo que todo o álbum transmite (não apenas as letras): o desesperante mergulhar na agonia e dor como única forma de existência. Não por um qualquer desejo de auto-flagelação mental, mas porque são estas as emoções que surgem como as mais verdadeiras.
Tal como tudo no álbum, as letras apresentam-se num plano bastante pessoal que apesar de poder ser, à partida, assimilado, torna a sua interpretação sempre muito relativa (ainda mais que o habitual na maioria dos álbuns).
Ainda para mais algumas letras são bastante alegóricas (sobretudo no que diz respeito à expurgação homicida perpetuada pelo "narrador" das letras) o que reforça ainda mais este aspecto.

Todo o álbum surge bastante homogéneo nos seus aspectos mais gerais, mas encerrando a cada tema algo de novo, o que ajuda a manter o interesse ao longo dos quase quarenta e cinco minutos de audição.
No caso de Melancholy Beginning temos bastantes variações de tempo, sejam as velocidades dilacerantes impostas pelas guitarras, ou os riffs mais lentos e melancólicos que suportam os arrepiantes (e singulares) guturais de NH.
Os temas seguintes seguem a mesma linha, embora contendo sempre riffs e variações que não são ouvidas em mais nenhum momento do álbum. Exemplo disto são os riffs inicias de Arising From The Ashes que são um dos destaques do álbum, ou os momentos que de alguma forma relembram Celestia (com as devidas diferenças, claro) em Devouring Your Essence e Being Us One With Hatred.

Há, apesar de tudo o que já foi dito, um momento marcante em Tormented Belief e que mesmo que todo o brilhantismo do trabalho não fosse uma realidade, já faria valer a pena, por si só, ouvir o álbum. Falo do meu tema preferido de Corpus Christii, Constant Suffering.
O tema é de alguma forma mais melódico e não apresenta (na maior parte do tempo) a velocidade que o resto do trabalho tem, mas devido à simbologia do mesmo no álbum, se compreende, aceita e depois de absorvido, se louva. É um tema carregado de emoção... não de um qualquer romantismo fácil, mas de sentimentos perturbados e cruelmente odiosos... um perfeito resumo do que Tormented Belief (e a própria banda nesta sua fase da carreira) representa... e na minha óptica o tema é paradigmático daquilo que o próprio Black Metal deve ser.

Conclusão
Tormented Belief apresenta-se como um disco único na cena portuguesa e sobretudo porque surgiu numa fase em que o Black Metal já não via algo tão refrescante há já algum tempo. Mesmo à esfera global, é uma abordagem original ao próprio género. Mas mais importante do que isso, é um grande álbum, uma prova inegável da qualidade que Corpus Christii atingiu, muito especialmente com fase iniciada neste mesmo trabalho.

Pessoalmente é o meu trabalho preferido de Corpus Christii. Porque é musicalmente um trabalho sublime, porque é um álbum perturbado e coberto de "texturas" que me dizem muito, mas acima de tudo porque a identificação que sinto com Tormented Belief é enorme (os motivos por detrás da mesma não os mencionarei) e por isso mesmo, faz com que seja um trabalho essencial para mim.
Mas mesmo para quem não sinta tal identificação é uma obra sublime de Black Metal.

PhiLiz

domingo, 2 de novembro de 2008

Corpus Christii - Rising

Corpus Christii - Rising

Introdução
Corpus Christii é hoje uma das maiores entidades do BM a nível mundial e em Portugal a banda de NH é provavelmente a referência máxima do género.
Para este "estatuto" muito contribuem as três fazes da trilogia que Rising finaliza, que representam segundo NH: a devastação total (Tormented Belief), seguindo-se a raiva e a auto-descoberta (The Torment Continues), finalizando-se com a ascensão e subsequente descoberta da luz nesta última proposta da banda.
Os registos de 2003 e 2005, de enorme qualidade, deram ao projecto de NH ainda mais notoriedade ao mesmo tempo que mostravam os passos para um tipo de sonoridade mais trabalhada e distinta daquela seguida pela banda até então, embora o Black Metal se apresente hoje, como em 1998 (ano de formação da banda) como característica principal de Corpus Christii.

No entanto, o Black Metal de CC a partir de 2003 surge como uma criação muito pessoal do mentor da banda, Nocturnus Horrendus. Um misto entre melancolia musical e satanismo filosófico, numa abordagem ao género bastante mais complexa do que a feita pela banda anteriormente.
Nesta linha Rising surge como uma criação ainda mais ambiciosa (musicalmente falando) com elementos sonoros novos a CC, transportando Rising para um nível de excelência ainda maior do que o conseguido nos dois últimos trabalhos.



Alinhamento
01 - Intro
02 - Stabbed
03 - Blank Code
04 - Black Gleam Eye
05 - The Wanderer
06 - Torrents Of Sorrow
07 - Void Revelation
08 - Evasive Contempt
09 - Heavenless Bliss
10 - Untouchable Euphoria
11 - Bleak Existence
12 - Revealed Wounds
13 - Outro

Ano 2007

Editora Nightmare Productions

Faixa Favorita 12 - Revealed Wounds

Género Black Metal

País Portugal

Banda
Nocturnus Horrendus - Bateria, Baixo, Guitarras & Voz
Menthor - Bateria



Review
Gravado nos UltraSoundStudios e produzido Daniel Cardoso (o dono dos estúdios e antigo membro dos extintos Sirius), Rising apresenta-se muito bem produzido para o género.
Os instrumentos estão bastante audíveis: as guitarras têm uma afinação perfeita para o efeito pretendido, o baixo é perfeitamente perceptível (um dos pontos extra do álbum), a bateria é avassaladora e o trabalho com a voz está soberbo. Acima de tudo, tem alguma "sujidade sonora" e não é demasiado polido para um álbum de Black Metal o que por vezes pode colocar em causa a atmosfera geral do álbum, o que não neste caso.
Todos os instrumentos foram gravados na totalidade por NH à excepção da bateria, gravada quase inteiramente por Menthor dos Epping Forest. A este propósito é de referir o grande trabalho deste membro convidado. A bateria apresenta-se com uma força maquinal imensa, com diversas variações e uma execução imaculada. O produção ajuda muito a enfatizar a brutalidade que Menthor "empresta" a Rising. Sem dúvida um ponto muito positivo.

O resto vem directamente da mente de Nocturnus Horrendus. Os riffs melancólicos, mas ao mesmo tempo dilacerantes estão propositadamente mais destacados e são um dos maiores factores de interesse no álbum. Com diversas mudanças e sobreposições, o trabalho de guitarra vai de encontro à complexidade e evolução que a banda tem tido, mas são os momentos melancólicos e genuinamente deprimentes que dão um toque ainda mais pessoal a um trabalho pincelado pela dor e pelos tons negros da mente humana.
Nesta mesma linha, o baixo encontra-se bastante presente e de uma forma um tanto ou quanto surpreendente assume-se como um elemento que para além de completar dá uma atmosfera ainda mais distorcida e arrastada às músicas (como acontece, por exemplo em Stabbed).

A voz assume-se, obviamente, como o elemento que mais transmite as emoções na música de Rising e neste ponto é preciso dar um grande destaque à excelente performance de NH.
Variando entre um gutural bem reconhecível, angustiantes gritos de dor e momentos mais limpos, os vocais são um dos factores mais interessantes do álbum. NH expele o ódio e a misantropia através de alguns dos mais arrepiantes momentos vocais alguma vez executados sob o nome de Corpus Christii e o álbum ganha incomensuravelmente com isso.

Mencionei anteriormente que este seria porventura o álbum (musicalmente) mais ambicioso de Corpus Christii e isto é algo que se compreende assim que se começa a ter uma ideia das várias influências e dos pormenores bastante diversos que Rising encerra.
Os riffs e ritmos mais lentos e soturnos remetem para uma atmosfera Doom que abrilhanta e diversifica ainda mais o álbum. Neste sentido faixas como The Wanderer ou a emocional Revealed Wounds têm sons que vão para além do espectro do Black Metal.
Há algumas bandas que vêm à cabeça aquando da audição do álbum como Deathspell Omega ou Ved Buens Ende, sobretudo devido à variedade rítmica e à atmosfera criada, mas Corpus Christii tem uma envolvência única devido à forma como tudo se passa muito no plano pessoal, o que transparece bem para a música.

Outro factor que é facilmente reconhecível no álbum é a religiosidade que lhe está inerente. NH denomina Corpus Christii como uma banda de Black Metal religioso, de cariz demarcadamente satânico. A Intro com o seu coro evangélico ajuda neste aspecto, mas todo o álbum remete para este sentimento religioso. No que concerne a esta matéria alguns momentos líricos demonstram bem que apesar de as letras estarem já longe de algo como All Hail... (Master Satan) a devoção a Satanás, o espalhar da sua palavra e o encontrar da verdade através do mesmo são o objectivo primordial de NH, como visceralmente expelido em Void Revelation:Satan! Life for those who seek the truth!

Todas as faixas são bastante únicas e distintas (embora o sejam apenas o suficiente para manter o interesse e não soem demasiado díspares e desgarradas de uma linha comum) o que faz do álbum não só um conjunto bastante coeso e sólido, mas igualmente uma fonte de grandes hinos de Black Metal.

Neste aspecto há a destacar Stabbed, logo a primeira faixa do álbum (a seguir à Intro) e que deambula por entre os riffs cortantes e momentos mais atmosféricos, tudo isto com Nocturnus Horrendus exprimir os mais desesperantes sentimentos de forma agonizante.
No momento que se segue a bateria de Menthor tem um dos seus pontos altos. Blank Code tem um ritmo mais rápido na maior parte do tempo, mas também é onde se pode encontrar um dos primeiros momentos em que Nocturnus Horrendus usa uma voz mais falada, o que dá uma ideia de ritual e que resulta muito bem.
Ainda nesta toada mais tradicional encontramos Untouchable Euphoria (com alguns elementos mais Thrash à mistura) ou Evasive Contempt que dão corpo à vertente mais rápida do álbum.
Os riffs tristes são enfatizados em faixas como The Wanderer, Torrents Of Sorrow, Heavenless Bliss ou no momento mais emocional (e simultaneamente mais brilhante) do álbum Revealed Wounds onde numa toada depressiva tudo flui numa corrente de pura melancolia.

Cada faixa tem pormenores que só serão notados à medida em que o álbum for absorvido. É este outro dos grandes pontos do álbum, onde as faixas vão ganhando de uma forma estranha nova força e nova dinâmica, seja individualmente, seja no contexto de um álbum que devido a uma atmosfera rica em vários elementos se torna numa autêntica surpresa, a cada audição.

Quando totalmente absorvido, a ideia geral que mais se retém é a expurgação de sentimentos negativos muito fortes e vincados. O arrepiante Outro é parte essencial disto mesmo e mais do que algo que soe esteticamente bem, é um grito (literalmente) libertador de tudo quanto a trilogia Tormented encerra.

Conclusão
O mínimo que se pode dizer é que Rising é mais um enorme passo em frente na carreira de Corpus Christii e demonstra em especial todas as potencialidades de composição do seu mentor, Nocturnus Horrendus. Desta vez NH conseguiu uma obra extrema em sonoridade e complexidade, bem como cimenta a unicidade de CC no panorama do Black Metal mundial.

Rising assume-se inevitavelmente como um dos melhores lançamentos de 2007 (seja em que dimensão territorial estejamos a falar), bem como uma das mais brilhantes criações de sempre na cena Black Metal nacional.

PhiLiz

sábado, 1 de novembro de 2008

HIM - Venus Doom

HIM - Venus Doom

Introdução
Quando se fala na banda finlandesa de Ville Valo é normal pensar-se em estruturas musicais simples, tendencialmente a virar para o Rock mais acessível (sobretudo a partir do já longínquo e genial primeiro álbum). Não que seja um facto totalmente negativo (a própria natureza da banda assim determina este aspecto), mas a verdade é que do ponto de vista musical e se quisermos técnico, HIM não era, de todo, uma banda com grande complexidade (não que isto signifique que os músicos eram insatisfatórios a este nível). Esta ideia saiu reforçada com o lançamento de Dark Light (anterior álbum da banda, de 2005), um trabalho nitidamente mais acessível e Pop, mesmo tendo em conta os anteriores trabalhos da banda e o sucesso que alcançaram.

Logo quando saíram as primeiras informações sobre o álbum, a banda apontava para uma direcção mais pesada e ambiciosa do ponto de vista musical, apenas continuando liricamente a linha poética e alegórica que se encontra presente desde Love Metal. A opção pelos mesmos produtores (Tim Palmer e Hiili Hiilesmaa, este último o mesmo que produziu o primeiro álbum da banda) desse mesmo trabalho (datado de 2003), indicava que iria ser um trabalho mais virado para as guitarras e sons mais pesados do que, pelo menos, o anterior.

Estas indicações confirmam-se na totalidade. Se Dark Light foi uma grande mudança no som de HIM, Venus Doom também o é, mas numa direcção completamente oposta. Os factores que tornam o som imediatamente associável à banda, estão presentes (principalmente a voz), mas há vários elementos novos a qualquer álbum que a banda tenha feito e logo à partida este facto torna o álbum bastante interessante.



Alinhamento
01 - Venus Doom
02 - Love In Cold Blood
03 - Passion's Killing Floor
04 - Kiss Of Dawn
05 - Sleepwalking Past Hope
06 - Dead Lover's Lane
07 - Song Or Suicide
08 - Bleed Well
09 - Cyanide Sun
10 - Love In Cold Blood [Special K Remix] */**
11 - Dead Lovers' Lane [Special C616 Remix] */**
12 - Bleed Well [Acoustic] **

* - Apenas disponível na edição especial do álbum.
** - Apenas disponível na edição limitada do álbum.

Ano 2007

Editora Sire Records

Faixa Favorita 05 - Sleepwalking Past Hope

Género Gothic Rock

País Finlândia

Banda
Emerson Burton (Janne Puurtinen) - Teclados
Gas Lipstick (Mika Karppinen) - Bateria
Linde (Mikko Lindström) - Guitarra
Migé Amour (Mikke Paananen) - Baixo
Ville Valo - Voz



Review
O som de um isqueiro e de seguida um suspiro...
É assim que Ville Valo inicia o álbum, o sexto da banda: em tom catártico. É bem compreensível que assim o seja, após vários acontecimentos traumáticos com o vocalista da banda desde o lançamento de Dark Light no fim de 2005. Os detalhes sobre os mesmos são irrelevantes, mas o impacto que estes tiveram na banda são importantes (como um todo e não como acontecimentos isolados) e ajudam a perceber a toada reinventiva da essência da própria banda que Venus Doom toma.

O que se nota logo à partida no álbum é uma vontade experimental enorme. Seja através das texturas musicais criadas pelas guitarras, as partes instrumentais muito ao jeito de Black Sabbath (influência confessa da banda), as peculiares intromissões do baixo ou ainda as letras, cada vez mais complexas e literárias (uma clara mudança desde os primeiros tempos da banda, onde o amor trágico surgia retratado de forma bem mais directa e simples), a verdade é que todo o álbum é envolto numa atmosfera bastante densa e que tem várias incursões a géneros que a banda nunca explorara antes.

Concretizando, temos um claro piscar de olho a algumas ideias mais progressivas, facto até aqui completamente inédito e corporiza-se sobretudo na não utilização da habitual composição, "verso-refrão-verso-refrão", bem como alguns arranjos que fazem lembrar o estilo. As próprias opções a nível da duração das músicas reflectem algumas influências do estilo.
É ainda possível distinguir alguns elementos bem Doom (este facto é uma das mais surpreendentes revelações de todo o álbum e está bem presente em todo o trabalho) e que tornam o álbum soturno, negro e com uma áurea profunda de melancolia. A música não é, obviamente, tão arrastada ou pesada como a praticada nas bandas mais pesadas do estilo, mas a simbiose suave das características principais do Doom (o refrão neste aspecto é bem literal) com o som mais "rockeiro" da banda, é uma das principais características dos HIM neste álbum.
Ainda neste campo, Black Sabbath surge como influência óbvia. Muitos riffs têm essa influência claramente destacada e os próprios momentos instrumentais que criam a atmosfera negra do álbum são remanescentes da banda de Tony Iommi.

A guitarra assume-se como o motor desta evolução ocorrida em Venus Doom comparativamente com os álbuns anteriores. Linde é um excelente guitarrista, que sempre deu à banda um toque único, mas nunca terá tido uma performance tão central num álbum. Se é certo que uma das principais marcas de HIM era a distorção muito própria dos primeiros trabalhos e esta desapareceu... mais certo ainda é que Linde tem um papel multi-facetado e essencial para a definição das principais ideias do álbum, bem como para os objectivos da banda nesta fase.
Os riffs sujos e bastante "sabbathianos" são a nota dominante no álbum, a par com os inúmeros solos que todas as músicas sem excepção apresentam. Este foi de resto, um caminho pelo qual a banda explicitamente optou, isto é, dar mais destaque e tempo à guitarra nesta proposta.
O trabalho de guitarra apresenta-se assim como um dos principais pontos de interesse do álbum. Muito variado, pesado, como uma distorção diferente da usada antigamente mas ainda assim distinta da maioria do que se faz actualmente, com vibrantes passagens em várias músicas entre muitos outros atractivos que se vão descobrindo a cada audição, pois os pormenores com que Linde vai polvilhando o álbum são muitos e variados.

Instrumentalmente, outro dos factores que se saúda é o regresso do baixo a um papel de relevo num trabalho da banda. Depois de alguns álbuns relegado para segundo plano, Migé volta a apresentar-se como um elemento realmente importante na construção da atmosfera de um álbum de HIM, tal como acontecia nos tempos de Razorblade Romance, não se limitando a "encher". Em consonância com a guitarra, o baixo assume um papel importante para a atmosfera densa e profunda que todo o álbum tem, através de riffs fortes e demarcados. Alguns dos melhores momentos do álbum são quando o baixo e a guitarra como que se interligaram e formam um par sonoro atmosférico e negro que em muito beneficia o sentimento geral de Venus Doom.

A bateria de Gas encontra-se numa toada semelhante a tudo o resto, com diversas variações de estilo em todo o álbum. Esta versatilidade assenta bem a Gas que é um vocalista bastante completo e cheio de ideias musicalmente distintas (é, por exemplo, baterista numa banda de Grindcore), tal como provam os momentos de espantoso relevo e exoticidade (a percussão em Sleepwalking Past Hope é um destes momentos).
Os teclados por outro lado, estão menos presentes do que em Dark Light, não deixando ainda assim, de dar um sentimento épico e melancólico ao trabalho, sobretudo nos momentos onde os instrumentos assumem uma posição privilegiada em relação à voz.

Falando nesta mesma voz, este é sempre um dos principais factores de destaque em álbuns de HIM e sobretudo para os fãs da banda. A voz de Valo apresenta uma expressividade e vulnerabilidade que sempre foram muito apreciadas pelos fãs e por outro lado, criticadas por alguns detractores da banda (embora a maioria das críticas neste campo sejam absurdas demais para uma menção séria).
Em Venus Doom, Ville Valo exibe-se mais maduro e ciente das suas capacidades vocais, variando entre registos mais agudos e graves, com especial destaque para estes últimos, que sempre foram um dos pontos fortes do vocalista de HIM. De resto, a voz acompanha inteiramente toda a temática lírica do álbum. A dualidade entre o amor e a tragédia é analogamente representada pela voz ora mais suave, ora mais soturna de Valo.
Liricamente, o álbum apresenta-se como um dos mais ricos da banda, com a poesia fantasmagórica, mas romântica de Valo, num estilo muito literário e alegórico, sempre tendo o amor trágico como pano de fundo. De resto, o álbum tem de alguma forma um conceito comum a algumas músicas, conceito esse que se prende com uma paixão com o fim trágico no clímax do álbum, Sleepwalking Past Hope.

De facto, as variações entre momentos mais habituais da banda e devaneios "à lá" Doom que estão particularmente presentes em Venus Doom ou Passion's Killing Floor são de resto uma simbiose à qual poderíamos de forma muito redutora chamar Doom Rock e que representa todos os sentimentos que a banda quis por no álbum. A última música do álbum, Cyanide Sun é o exemplo perfeito deste contraste entre peso e delicadeza, tragédia e beleza.
Até a música escolhida para o single, Kiss Of Dawn (música dedicada a um amigo da banda que faleceu pouco depois de finalizadas as gravações de Dark Light) tem na sua versão álbum um momento final muito mais exótico que o habitual na banda, com os teclados a envolverem a música num misto de mistério e erotismo.
Todas as músicas são de resto bem mais pensadas, tendo o álbum menos faixas que o habitual (apenas nove na edição normal) em HIM precisamente para evitar que houvessem músicas a mais o que se materializou em mais faixas de grande qualidade como é o caso da mais acelerada Love In Cold Blood, de um momento muito espiritual em Dead Lover's Lane ou Bleed Well num tom mais Pop e alegre que acaba por ser distinto do resto, mas encaixar-se muito bem no álbum.

Todo o álbum é contrastante: se por um lado temos o peculiar acústico Song Or Suicide com pouco mais de um minuto muito caseiro e introspectivo, temos por outro a opus do álbum, Sleepwalking Past Hope que simboliza tudo o que Venus Doom tenta demonstrar e fá-lo de forma brilhante. A mais longa faixa que a banda produziu até hoje, com mais de dez minutos de duração, é uma épica e negra viagem por um mundo onde várias emoções se cruzam de forma contagiante. Com momentos mais calmos e tristes onde o teclado vai dando um sentimento melancólico à música ou com momentos onde os solos de guitarra dão uma vibração fantasmagórica ao tema, tudo está perfeitamente interligado e redunda numa mensagem desolada, no momento mais pessoal e desolador do álbum. Se necessário fosse resumir o álbum num simples minuto seria o meio de Sleepwalking Past Hope onde a estrofe abaixo citada está inserida, seria o ideal:

I gave up long ago
Painting love with crimson flow
Ran out of blood and hope
So I paint you no more


Simplesmente arrepiante, uma das melhores músicas de HIM em muito tempo.

Quase no fim deixo uma pequena consideração. Este álbum foi "publicitado" como o mais pesado de HIM. Será o mais variado, talvez o mais bem conseguido musicalmente e o mais ambicioso, mas não concordo com o facto de ser o mais pesado. Nesse campo, a estreia da banda com Greatest Lovesongs Vol.666 (que permanece o meu favorito) tem um ambiente que puxa muito mais para o Gothic Metal, factores que se foram transformando ao longo da carreira da banda, inclusive em Venus Doom.
O "Gothic" em HIM está presente mas deixou de ser o principal "ambiente" presente nos álbuns e por outro lado a sonoridade, sendo pesada, é-o doutra forma, mais suja e não de forma tão agressiva e literalmente distorcida como o era no início.
Nenhuma destas considerações belisca a excelente qualidade deste álbum. A banda mudou e essa mudança deu grandes frutos, como é o caso de Venus Doom.

Conclusão
Formados já no longínquo ano de 1991(!), os HIM dão uma prova cabal de reinvenção e ambição musical com Venus Doom, um álbum cheio de grandes surpresas, talvez até mais para aqueles familiarizados com o anterior trabalho da banda.

A sonoridade não é a mesma do início da carreira e alguns (ou algumas...) poderão não compreender a profundidade e a evolução da banda, mas é inegável que a qualidade é a mesma, simplesmente "aplicada" de outra forma e com a maturação que o tempo sempre permite às grandes bandas.

PhiLiz