sábado, 30 de agosto de 2008

La Fontañera


O fim de tarde apresentava-se convidativo e belo, a temperatura era agradável e o carro embalava-me numa dormência confortável. Olhando pela janela os maciços graníticos do Alto Alentejo pareciam me cada vez mais surpreendentes e antigos. Aqueles majestosos anciões de outras eras vigiavam a paisagem de forma calma mas atenta, como que protegendo segredos face à modernidade a qual até naquelas paragens se poderia impor.

O caminho era de retorno, na nossa mente estava a ideia de um dia cumprido com pouco mais a descobrir. Voltávamos então de Valência de Alcântara. A cidade tinha nos deixado um pouco desconfortáveis. Depois de percorridas as suas ruas só o testemunho de uma velha porta de muralha e de algumas igrejas maltratadas pareciam familiares. Eram tristes aqueles murmúrios, tristes como que destinados a perderem-se nos fios do tempo. A história parecia maculada, embrenhada numa agonia ímpar. O maltratar físico transportava-se para a nossa mente em farrapos difusos. Era assim que dentro do carro a consciência disso mesmo contrastava com a paisagem.

De repente os gigantes de pedra abriram-nos um pequeno caminho, além de secundário parecia que se iria perder na natureza que o rodeava. Era suspeito, sujo e até deslocado. No entanto seguimo-lo, teria de se esperar mais que isso, talvez as pedras que nos iam guiando estivessem dispostas a dar-nos uma pequena miragem de algo que testemunhavam.

A paisagem já por si só única foi se caracterizando e avolumando cada vez mais. Queria certamente mostrar-nos que aquele era um rasgo seu de extraordinário esplendor. Distraídos por aqueles montes e arbustos, por aquela aura ancestral o percurso levava-nos cada vez mais de volta à fronteira, cada vez mais… apesar de ela teimar em aparecer.

Embrulhados já contemplativamente nos momentos que íamos vivendo tudo se revelava quase um sonho, um sonho o qual já nada tinha de humano. Tínhamo-nos fundido com o cenário decerto. Foi então que, para quebrar esta ilusão, vimos uma placa anunciando o fim daquele percurso místico.

Só aí nos apercebemos de que aquele trilho era também um portal, uma antecâmara necessária à percepção do que se seguiria. A placa, seguida de diversas casas, dizia “La Fontañera”. Estava acompanhada pelo marco de fronteira significando o fim anunciado da Portugalidade. No entanto, ela teimava em seguir sempre um pouco mais além.

Penetrando naquela realidade, os nossos passos ténues ressoavam no asfalto timidamente, à nossa volta vivia-se um silêncio algo incomum. Pouco a pouco os murmúrios da pequena aldeia começavam a chegar aos nossos ouvidos. Era o testemunho de que aquelas placas, nada mais senão matéria, eram algo de artificial, algo de desprezível perante os sons e a vida que se iam abrindo aos nossos sentidos.

As palavras que bebíamos eram português, um português que revelava uma faceta escondida e enternecedora do que é a nossa existência Pátria. Tudo se dissolveu, não havia nem Lisboa nem Madrid para definir limites, não se sentia a pressão do sistema educativo uniformizador espanhol, sempre atento a destruir a diferença. Vivia-se só a verdade, existia pura e simplesmente um Portugal transcendental que atravessava as eras e a própria carne mostrando-nos aquilo que somos. E, ao que em última análise, devemos ser fiéis.

Diogo Santos

quinta-feira, 21 de agosto de 2008


" Lisboa é o fim da linha. Lisboa é a cidade para onde confluem caminhos de ferro, estradas decanas, contentores. Chega-se às estações terminal, aos últimos metros de redes de milhares de quilómetros de aço quente e pesado, instalado duramente no chão, percorre-se toda uma arqueologia industrial em ruínas, decadente, sinal dos tempos passados em que o terminal fervilhava, e onde agora só descansam azulejos frios, funcionários de outra era, relíquias humanas e matérias obsoletas. Lisboa é a impessoalidade agora, a tecnocracia do betão modernista das avenidas do Estado Novo alia-se à alienação popular, mescla uma anti-patine de calcário decadente, desoladora...acende-se o cigarro com total indiferença, está calor mesmo que não esteja. Apanhamos o eléctrico aquecido pelo sol, o sol é da cor da translucida cerveja que se bebe no degradé melancólico da metrópole esquecida e letargica. Lisboa é o terminal. Lembram-se do "Degredo do Sul" ? "

Vou para o norte amanhã, para o granito, e para as serras em fogo. Boas férias aos outros.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Os Ventos do Cáucaso

A ofensiva russa na Geórgia deixou tudo e todos surpresos, até os que se dizem interessados e se possam considerar minimamente sabedores na área das relações internacionais. Lembro-me de estar pacificamente a degustar o meu pequeno-almoço na Ericeira quando os meus olhos percorreram o ecrã de televisão. Por um momento julguei que a noitada da noite anterior me tivesse toldado os sentidos. Pousei o iogurte e aproximei-me. "Ofensiva russa na Geórgia", tanques desfilavam nas ruas e civis angustiados davam brados agarrados a entes queridos colhidos pela morte. Todo o cenário era inimaginável na noite anterior. Não houve negociações, moderação por parte da comunidade internacional, ou sequer um ultimato que fosse, para nos avisar da tempestade que ai vinha. Isto não era o Iraque, era a Geórgia. Um país democrático e soberano que se incluí no que é a Europa geográfica, um continente que se julgava livre deste tipo de lógica "negocial".




Verdade seja dita, o precedente inaugural deste tipo de "aventurismo militar" foi o Iraque aquando da invasão americana. No entanto, mesmo nesse caso de unilateralismo e fuga ao arbítrio da ONU, houve um moroso processo de averiguação da situação, houve negociações, propostas e sanções que no mínimo até os mais críticos poderiam considerar o fingir de uma vontade negocial pacífica.




Tudo isso foi como que branqueado nesta situação. A Rússia dispara primeiro e depois, segura do seu poder, espera que a Europa e os EUA se dirijam a ela pedindo misericórdia para com aquele pequeno estado do Cáucaso (coisa que se veio a comprovar claro). É uma Rússia imperial que se volta a erguer, uma Rússia que se afirma interna e externamente e que, por isso mesmo, não está disposta a mais deserções à sua hegemonia nas suas áreas limitrofes. Já lhe bastou ver Ucrânia, Polónia e os estados bálticos estenderem a sua mão ao ocidente. Agora, mediante o atrevimento da pequena Geórgia, apresenta-se violentamente provando que o apoio diplomático americano (ou europeu) e o direito internacional se fracturam facilmente debaixo de colunas de blindadas.




É com grande apreensão que vejo este tipo de acção passar impune, ainda para mais tendo eu a convicção de que o desfecho final confirmará a validade empírica desta lógica processual. Curiosamente, quando presenciei esta situação, a primeira analogia que me veio à cabeça foi a da Manchúria. Esse marco, no distante ano de 1932, viu Tóquio submeter a China à sua vontade. Usaram-se maquinações desprezíveis, ameaças de toda a linha e em última análise, a força militar. Também na Manchúria a nação chinesa tentava controlar um território seu, também na Manchúria a desculpa foi a mesma: "Proteger bens e populações japonesas (substituir por "russas")", também na Manchúria a comunidade internacional agiu de forma leviana, não querendo por em causa as suas relações com Tóquio (desta vez inserir "Moscovo"). Por fim, e o mais importante, também na Manchúria foi ferida de morte a "ONU da época" e foi o multilateralismo substituído pela anarquia entre os estados. Essa mesma anarquia foi assentida hipocritamente pela Sociedade das Nações, cada estado estava preocupado com as suas próprias premissas e não queriam assim desagradar nações poderosas, por mais barbaricamente que agissem. À Manchúria seguiu-se a Etiópia, a Checoslováquia e, significando o que significou, Danzig.




A problemática é a mesma, o facto de a Rússia ter sucesso nestas campanhas de "pacificação" vem provar que o ramo militar cala nas situações críticas o ramo diplomático. O domínio que cada um tem da sua segurança passa a depender do poder dissuasor da sua potencialidade bélica. Entra-se numa lógica de blocos, os organismos multilaterais mostram-se pouco confiáveis. Preocupa-me, por isso, uma corrida ao armamento, preocupa-me a impunidade que outros estados poderão pensar ter depois disto, preocupa-me que valor terá a vida humana e se será mais uma vez o perseguir de um futuro colectivo baseado na cooperação e mutualismo adiado.


Já passaram mais de duzentos anos desde que Immanuel Kant escreveu a "Paz Perpétua" e continuamos a deixar-nos cair nos mesmos erros. O mesmo empirismo decadente continua a florear as declarações vazias dos chefes de estado, a mesma lassidão no que toca a tomar iniciativas firmes. Enquanto ideais mais nobres não regerem o planeta em que vivemos, continuaremos a correr o risco de acordar e ver operações militares a interromper-nos o pequeno-almoço, ou quem sabe, a vida.

Próximo Passo

Após ter pensado na melhor forma de potenciar a actividade e o sucesso deste blog de forma criativa e emancipada, cada vez mais na minha mente me parecia adequado abrir o espaço a textos que não tivessem um objecto indirecto; ou seja, à crítica de situações reais sem ter como intermédio uma exposição feita por outrém.

É neste sentido que, após o estoirar da crise no Cáucaso, se tornou claro que isso seria essencial. Eu próprio senti vontade de vir aqui e expressar as minhas preocupações quanto à situação. Assim eu próprio experimentei aquilo que nunca quis que acontecesse, restrições criativas.

No more, a partir de agora este espaço e a sua natureza estão puramente dependentes do arbítrio dos seus membros, tendo a versatibilização que prometi o seu pique máximo.

Para "estrear" esta nova faceta aqui está o meu texto sobre as reprecursões que esta crise internacional poderá vir a ter,

espero que o apreciem =)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O Cavaleiro Negro

O Cavaleiro Negro

Antes de tudo penso que devo salientar uma palavra que define este filme: Fantástico! Sei que não devo estar a dizer nada de novo mas achei que como meu primeiro post deveria falar de algo que nos últimos tempos me entusiasmou muito. O último filme de Batman –The Dark Knight- que estreou ainda não há muito tempo. Este filme tem andado nas bocas do mundo e com boas razões para tal. De salientar que já ultrapassou as receitas do último filme do Homem-Aranha, se não estou em erro.
Continuando, este é a primeira vez que vejo um filme de heróis de BD e, afinal, não é apenas mais um filme recheado com o pacote básico de heróis e vilões e donzelas pelo meio. É muito mais que isso. Este é um filme que primeiramente conseguiu pegar no verdadeiro ambiente “negr” de Batman e do seu mundo, a cidade de Gotham (desejo referir que esta afirmação em nada insulta os filmes de Tim Burton, pois a meu ver ele criou a sua imagem de Batman de uma forma única, que adoro).
The Dark Knight penetra na verdadeira essência humana e nos seus desejos primordiais. Ou não... Na verdade durante este filme vemos as várias personagens numa constante luta interna, ou melhor, numa descoberta interna, numa tentativa de compreenderem o que realmente querem e qual o seu lugar no mundo. Escusado será dizer que a única personagem que, de facto, tem todos esses “problemas” resolvidos é o Joker –representado pelo falecido Heath Ledger.

Encontramos neste filme uma série de estrelas, como : Christian Bale ( Bruce Wayne/ Batman); Heath Ledger ( Joker); Michael Caine (Alfred Pennyworth); Aaron Eckhart (Harvey Dent/ Two-Face); Morgan Freeman (Lucius Fox); Gary Oldman ( Tenente James Gordon); e até uma breve passagem de Cillian Murphy ( Espantalho) .Todos merecem os seus créditos, principalmente Maggie Gyllenhaal que melhorou em muito a personagem de Rachel, feita no filme precedente por Katie Holmes.

Neste filme Gotham encontra-se no meio de um projecto de combate ao crime imenso, tendo Harvey Dent ( Aaron Eckhart) como o seu Cavaleiro Branco. Preocupados com a situação, os mafiosos contratam uma nova figura na cidade, Joker (Heath Ledger), sem perceber que controlar este indivíduo é uma tarefa impossível.
Rapidamente Joker (Heath Ledger), numa sucessão de jogadas imprevisíveis vai adquirindo um maior poder e entalando tanto os mafiosos como a polícia de Gotham e o próprio Batman.
Batman vai precisar de enfrentar este novo sujeito imprevisível enquanto precisa de escolher quem é mais importante, Bruce Wayne ou Batman.
Em The Dark Knight temos uma combinação excelente de representações ( com grande ênfase em Heath Ledger que fez uma representação espectacular e arrepiante); seguimos um filme cheio de acção e suspense que nos prendem ao ecrã e que principalmente nos faz ponderar constantemente : “ Onde é que está o Joker e que andará a fazer?”

Ficha Técnica:
Título Original: The Dark Knight
Género: Aventura
Tempo de Duração: 142 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2008
Site Oficial: http://thedarkknight.warnerbros.com
Direção: Christopher Nolan
Argumento: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, baseado na história de Christopher Nolan e David S. Goyer e nas personagens criadas por Bob Kane

Elenco: Christian Bale – Bruce Wayne/ Batman
Heath Ledger –The Joker
Aaron Eckhart –Harvey Dent / Two-Face
Michael Caine –Alfred Pennyworth
Maggie Gyllenhaal –Rachel Dawes
Gary Oldman –Detective James Gordon
Morgan Freeman – Lucius Fox
Cillian Murphy –Espantalho
Eric Roberts –Salvatore Maroni

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Hades - ...Again Shall Be

Hades - ...Again Shall Be

Introdução
A infame e bem conhecida vaga de Black Metal norueguês que nasceu nos anos 80 e explodiu nos anos 90 permanece como um dos fenómenos mais intrigantes, surpreendentes e polémicos (com especial ênfase para este último aspecto) dentro do universo alargado em que se insere.
Pelo meio de todos os acontecimentos mediáticos (e fora do contexto musical) surgiram projectos e bandas de importância ímpar para o género, como é o caso de Mayhem, Burzum, Emperor, Immortal, Darkthrone, Thorns, etc. A inclusão de Hades neste ilustre lote surge um pouco mais tarde (a banda forma-se em 1992, numa altura em que o movimento já ia numa fase bastante adiantada), mas isso não impediu a associação de Hades em relação à cena norueguesa, embora os principais trabalhos (incluindo o que está em análise) - tanto enquanto Hades como depois enquanto Hades Almighty uma vez que a banda mudou o nome em 1999 - datam de anos em que o movimento já tinha ultrapassado o seu apogeu.

Na verdade, ...Again Shall Be é lançado em 1994, já depois de alguns acontecimentos marcantes perpetuados por alguns membros famosos de bandas de Black Metal: o suicídio de Dead em 1991, o assassínio de Euronymous por Varg em 1993 ou as inúmeras igrejas queimadas.
Este último aspecto assume especial importância na carreira (fora dos limites musicais, claro) da banda aqui em questão, uma vez que um dos seus membros fundadores, Jørn Inge Tunsberg, foi condenado (juntamente com Varg Vikernes) por fogo posto a uma igreja da cidade norueguesa de Bergen em 1992, o que lhe valeu uma condenação no ano a seguir.

Não deixa de ser curioso o facto de Hades ser uma banda associada com alguns dos actos mais mediatizados da cena norueguesa, mas por outro lado nunca ter tido um reconhecimento tão grande como algumas das bandas de lá saídas. Apenas o factor temporal (como já referido, a banda forma-se numa fase já avançada do "movimento") pode explicar este aspecto em relação à banda de Bergen, porque tanto a nível de qualidade musical como de criatividade, Hades (e claro, o álbum aqui a ser revisto) ombreia com as melhores propostas de Black Metal norueguês da altura.



Alinhamento
01 - Pagan Triumph
02 - Hecate (Queen Of Hades)
03 - The Ecstacy Of An Astral Journey
04 - An Oath Sworn In Bjorgvin
05 - ...Again It Shall Be
06 - The Spirit Of An Ancient Past
07 - Unholy Congregation
08 - Glorious Again The Northland Shall Become
09 - Be-Witched
10 - In The Moonless Sky

Ano 1994

Editora Full Moon Productions

Faixa Favorita 03 - The Ecstacy Of An Astral Journey

Género Black/Viking Metal

País Noruega

Banda
Janto Garmanslund - Baixo, Teclados, Voz
Jørn Inge Tunsberg - Guitarra, Teclados
Stig Hagenes - Guitarra
Remi - Bateria



Review
A música de Hades - para além da qualidade intrínseca da mesma - poderia perfeitamente ser um objecto de estudo no que diz respeito a criar algo bastante surpreendente, pegando na conjuntura que rodeava a banda e nas influências passadas, de forma bastante improvável e ter um belo resultado, sem soar pouco coeso ou demasiadamente colado ao que estava em seu redor.
Isto sucede porque genericamente podemos classificar Hades, como uma banda de Viking Metal (por muito que o rótulo seja tradicionalmente pouco dissociado do Folk Metal, mas até neste campo a banda consegue mover-se com mestria) sendo que ao mesmo tempo a banda também bebe naturalmente daquilo que se passava na Noruega a meio dos anos 90, pelo que são notórias as influências do Black Metal mais gélido e que hoje é visto como o padrão para todo o género, dada a influência das bandas norueguesas de Black Metal mais famosas.

O curioso e único em Hades (e com ênfase considerável em ...Again Shall Be) vem da forma como as influências são mescladas. Tanto o Viking Metal como o som saído da Noruega nos anos 90 têm primordial e vital inspiração: Bathory. Por um lado, álbuns como Blood Fire Death, Hammerheart ou Twilight Of The Gods estão na base do que se chama hoje Viking Metal. Por outro lado, trabalhos como o homónimo Bathory ou Under The Sign Of The Black Mark iluminaram (ou escureceram) o caminho para o que viria a ser o Black Metal moderno tendo grande impacto (até a nível da morfologia da criação musical) em compositores futuros como foi o caso de um tal Varg Vikernes...
Mais do que perceber o que está em pano de fundo para a criação deste ...Again Shall Be é importante compreender o seguinte: estando a banda inserida num "movimento" que absorve muito do que Quorthon fez nos seus primeiros álbuns, Hades escolhe uma via diferente (e temporalmente mais próxima, visto que a primeira fase Viking do projecto sueco é já no fim dos anos 80 e início da década de 90), absorvendo da influência óbvia, a parte que seria menos de esperar, sendo este aspecto uma das principais razões para a abordagem de Hades ser bastante única no contexto das bandas de Black Metal suas contemporâneas e conterrâneas.

Como toda a envolvência sugere o álbum apresenta-se como uma viagem ao terreno glaciar norueguês. Todo o trabalho está revestido de uma áurea gélida que remete para a imponência dos fiordes e para majestosidade das montanhas cobertas de gelo, dois aspectos que dominam a paisagem do país,
Há semelhança do que sucede com álbuns (In The Nightside Of The Eclipse, lançado também em 1994, surge como referência imediata) de várias das bandas que formavam o núcleo duro do "movimento" norueguês o ambiente do álbum transporta imediatamente o ouvinte para as paisagens descritas acima e que fazem parte do quotidiano dos membros das bandas nessa altura.
Além da recriação geográfica através da música, ...Again Shall Be é uma viagem histórica aos tempos da "Noruega" viking (evidentemente as aspas aludem ao facto do estado norueguês da altura ser substancialmente diferente daquele cimentado no século XX), com uma sonoridade épica, bélica e remanescente de todo o imaginário pagão que dominou o território "norueguês" a partir do século IX.

Todos os elementos do álbum são direccionados na tentativa de recriar uma ancestralidade épica, recorrendo frequentemente a passagens acústicas, riffs melódicos, tempos médios e acima de tudo a uma poderosa atmosfera (esta é de resto a característica que, sendo diferente em todas as bandas, mais define o Black Metal norueguês da altura) que conduz o álbum de forma grandiosa em quase todos os seus momentos.
O resultado é bastante homogéneo e o álbum tem grande coesão, muito em virtude do seu cariz épico e atmosférico que dão uma ideia de perseverança quase bélica a toda a experiência sonora. No entanto, o facto do efeito geral ser bastante compacto não faz o álbum cair na monotonia uma vez que se assiste a uma variedade de recursos considerável e ao desfilar de pequenos arranjos que vão criando uma abordagem diferente em cada faixa de ...Again Shall Be, embora sempre dentro de uma sonoridade épica e melódica. Estes últimos traços são uma constante durante todo o álbum enriquecendo especialmente a atmosfera geral e tornando o álbum numa experiência sempre bastante diversificada. A produção ajuda no discernimento destes pormenores, porque embora seja algo crua nalguns aspectos (nomeadamente na voz), no geral o som dos instrumentos é bom e tudo se ouve com clareza (inclusive o baixo). Este aspecto é essencial para a abordagem ao Black Metal que a banda tem, porque o cariz mais elaborado das composições da banda comparativamente ao que algumas bandas do género (inclusive da mesma altura deste álbum) assim o requer, caso contrário a atmosfera mais fantasiosa perder-se-ia consideravelmente.

Instrumentalmente o álbum é dominado pelas duas guitarras, pela bateria tendencialmente lenta mas dinâmica e pelos guturais agudos de Janto.
Em relação ao primeiro aspecto, as duas guitarras fazem um trabalho bastante apreciável no que diz respeito à melodia envolvente que todo o álbum apresenta. Os riffs são tradicionalmente melódicos e as progressões épicas são uma constante em quase todas as músicas. As introduções acústicas ou os momentos acústicos também estão presentes variadas vezes contribuindo em muito para o toque Viking já referido (e a inspiração para este pormenor é fácil de localizar, basta ouvir faixas como o The Lake de Bathory...). Este uso de guitarras acústicas resulta em pleno, nomeadamente numa das melhores faixas do álbum, Glorious Again The Northland Shall Become onde a dupla de guitarristas (com especial destaque para Jørn Tunsberg, o principal mentor da banda) está em grande destaque, quer com os já referenciados momentos acústicos, quer com alguns dos melhores momentos melódicos e poderosos (sem nunca aumentarem muito a velocidade) que o álbum tem para oferecer.

No capítulo rítmico, a bateria é praticamente sempre executada num tempo relativamente baixo, apresentando todavia um grande dinamismo. Os momentos rápidos não são muitos, mas quando surgem são precisos e frenéticos, em forma de castigo. Nalgumas faixas como em The Spirit Of An Ancient Past ou An Oath Sworn In Bjorgvin, os blastbeats estão perfeitamente colocados, sendo que a aceleração não retira a sensação de misticidade que paira sobre todo o álbum. Pelo contrário, os tempos mais rápidos estão ligados na perfeição às partes mais lentas e épicas que dominam a maioria do trabalho de Stig Hagenes em ...Again Shall Be. Na maioria das faixas assistimos a um trabalho de bateria que encaminha a música em ritmos vagarosos e com passos pesados, dando a ideia de uma sensação de uma jornada épica e dura por entre terras distantes no tempo e espaço. À semelhança do que sucede com o baixo é usado como um forma de acentuar a melodia através do uso de ritmos condizentes com a mesma, mais do que para serem instrumentos destacados na música. No entanto, isto não impede que o baixo seja bastante audível e razoavelmente interventivo, graças a uma distorção muito própria que confere à música um peso acrescido. Apesar de quase sempre só acompanhar as guitarras, há faixas em que o baixo surge como algo mais do que um complemento, sendo este aspecto particularmente notório em Hecate (Queen Of Hades) ou na faixa-título, quando Garmanslund, para além dos excelentes vocais, tem algumas linhas de baixo bastante interessantes e que devido à distorção pronunciada confere aos temas uma obscuridade ainda maior.

No que concerne aos vocais, temos um dos elementos que são mais característicos do Black Metal: guturais agudos e rasgados que, não obstante as semelhanças com bandas e projectos da mesma época (como Burzum a título de exemplo), conseguem ter uma originalidade e interesse individual considerável na medida em que o timbre (nos momentos de voz limpa) e a forma poderosa como Garmanslund vai expelindo a lírica bélica sobre o glorioso passado nórdico fazem com que o trabalho vocal seja sempre bastante interessante de acompanhar. A voz limpa é quase sempre apresentada através dos coros que ocasionalmente surgem nas músicas, como na introdução Pagan Triumph (que apesar de ser uma intro não é apenas uma pequena composição e mostra logo sinteticamente alguns dos moldes em que todo o álbum se baseia), mas também surge de forma mais individualizada em Be-Witched. No entanto, são os guturais que predominam, sendo uma das marcas mais características do álbum.

A presença dos teclados é curta e bastante limitada (excepto na última música que é praticamente toda ambiental), mas quando surgem ajudam a reforçar a atmosfera negra e obscura do trabalho, enriquecendo ao mesmo tempo a parte melódica, uma das particularidades do álbum.

...Again Shall Be é um álbum, que para além da sua qualidade sonora, consegue encaixar-se na perfeição num subgénero que por vezes acaba por ser contestado face a alguma falta de identidade. Distancia o Viking do Folk, na medida em que cria melodias épicas e poderosas através de um som atmosférico e sombrio, ao invés de recorrer a elementos mais característicos do folclore norueguês. É certo que a lírica remete para este último aspecto, mas instrumentalmente o álbum separa perfeitamente um subgénero de outro. Há de facto um som épico, mas é bastante mais negro do que o Folk costuma ser e é esse o sentimento geral que mais se acentua (devido ao uso de instrumentos tradicionais do folclore a recriar) ao contrário do que acontece no Folk Metal onde a ênfase vai tradicionalmente para a parte das sonoridades mais locais. Apesar, de ser discutível a existência de tal divisão dentro do Metal (devido ao facto da divisão ser muitas vezes feita só através das letras), em ...Again Shall Be a linha parece ser menos ténue entre Folk e Viking Metal.

Todavia, o álbum é acima de tudo um (exímio) trabalho de Black Metal (o que também acentua a divisão referida acima). As estruturas musicais e a complexidade de camadas de som está ao serviço da criação dum álbum tenebroso e gélido. Apesar dos elementos já referidos e que são exteriores ao género, o peso e a atmosfera são claramente de um álbum de Black Metal ainda que com um tom muito único. O som é epicamente refinado, mas cru e directo. As próprias melodias têm um tom apocalíptico e bélico bastante característico do BM.
É enquanto álbum de Black Metal que ...Again Shall Be se realiza completamente. Através da força que transmite e da sua capacidade de retractar sonoramente toda a ancestralidade em que a banda se inspirou para realizar a obra.

Conclusão
Quando se fala da cena norueguesa do final dos anos 80 e início dos anos 90, é preciso ter em conta que são muitos os álbuns de referência e ainda mais aqueles álbuns que são esquecidos, apesar de serem de elevado nível. ...Again Shall Be está na melhor tradição qualitativa dos álbuns de Black Metal norueguês da altura (apesar da sua abordagem diferente da maioria das bandas). Por ser num estilo que já estava cimentado por Bathory talvez não tenha o crédito que álbuns mais distantes da sonoridade praticada até então e que se tornaram em autênticos marcos do BM moderno. No entanto, isto não invalida que o primeiro álbum de Hades consiga ombrear com algumas das melhores criações saídas na altura por parte de bandas norueguesas... e a "concorrência" é bastante grande.

É admirável a forma como os jovens músicos de Hades se conseguem movimentar nas inúmeras influências que têm, criando um álbum essencial dentro do Viking Metal e paradigmático naquilo que a cena norueguesa tinha de melhor: pintar sonoramente a paisagem e história do país em questão.

PhiLiz

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Densha Otoko







Densha Otoko (série)




Network: Fuji Television


Episódios: 13


Género: Drama, Comédia, Romance



Recensão Crítica:

“Densha Otoko is the story of a “train man” who fell in love with a girl”; esta fórmula introdutória será prontamente reconhecida por qualquer japonês, e sem surpresa. Trata-se de uma das mais enternecedoras histórias do Japão contemporâneo.

A série “Densha Otoko”, literalmente Train Man, deu forma cinematográfica a um mito urbano alegadamente passado na cidade de Tóquio e divulgado originalmente na internet. Um Otaku (ver nota de rodapé 1) tímido e sem mínimas aptidões sociais defende uma mulher perante um bêbado no metro, uma mulher que usualmente se sentiria repugnada com a sua presença mas, derivado do seu acto de coragem, lhe agradece enviando-lhe um presente. Sem saber o que fazer, o protagonista pede ajuda num canal na internet. A partir desse momento decorre uma exploração construtiva, por vezes divertida, e em última análise humana desta sub-cultura, mostrando ao público as restrições internas e dilema que o personagem principal enfrenta face a uma situação a qual nunca esperou viver.

Apesar das diferentes formas que diversos realizadores e autores pensaram a história existem determinados “factos” que permanecem inalterados. Os pontos em comum são os que provém do log original disponibilizado no fórum e que tornam a história, seja qual for o toque do autor, apelativa e tocante; com facilidade nos encontramos a imaginar e pensar como terão ocorrido os eventos originais, como terão sido sentidos e vividos na realidade. É essa a verdadeira virtude da obra, estimular a nossa percepção quanto ao amor, lealdade, honestidade e esperança. Esses sentimentos são notoriamente transbordantes; é impossível não exprimir um sorriso após notar o quão importante se torna aquele suporte virtual para o personagem principal. O calor humano que provém do mesmo sustenta-o perante sucessos e fracassos tornando óbvios fortes vínculos afectivos entre aquelas pessoas que partilham a mesma realidade. Não é difícil para alguém com mínima consciência do que é Akihabara (ver nota de rodapé 2) imaginar as desconfortáveis circunstâncias que um “otaku” poderá enfrentar fora da sua esfera social. Quem não tem consciência do que se trata percebê-lo-á rapidamente. A série tem em atenção a explicitação dos conceitos que serão provavelmente estranhos aqueles que não estão acostumados ao referido contexto antropológico.

Convém frisar que tenho algumas reservas quanto à forma como a personagem feminina central foi encarada. O realizador decidiu-se por explorar a sua vida pessoal e expor as circunstâncias que levaram à aproximação ao protagonista. O facto de acompanharmos as suas desventuras e termos consciência de que ela começa a sentir-se protegida e querida junto do mesmo destrói um pouco a partilha dos medos e angústias do personagem principal. Sendo assim já não há uma tão forte sensação de pertença ao seu universo pessoal, temos assim, para o espectador, uma abordagem bicéfala à serie que minimiza a mensagem da mesma.

As personagens do fórum, por outro lado, foram apresentadas e desenvolvidas de forma extremamente inovadora e criativa. Cada uma delas tem uma estrutura pessoal própria, e usualmente, uma excentricidade pessoal que se denota pelas suas habitações, comportamentos e frases chave. Consequentemente, cada um tem maneiras diferentes de apoiar e encorajar o perdido “densha”, é com a sua ajuda que ele se expressa a todos os níveis, colhendo coragem para sair da sua bolsa existencial original. Troca de corte de cabelo, veste-se com mais bom senso, encontra restaurantes agradáveis e, mais importante que tudo, aprende a comunicar com o sexo oposto ganhando progressivamente confiança. Todos se tornam uma presença fulcral para ele sendo uma comunidade por si só. Inicialmente achei que inventar “side stories” com esses mesmos personagens era deslocado e irrisório, no entanto a forma como as mesmas são elaboradas em redor a significâncias do enredo original levaram-me a mudar de opinião. Elas dão mais cor à acção e fazem-nos perceber a importância que Densha acaba por ter para eles, inspirando-os.

O desenvolver da vida profissional do protagonista, sendo uma escolha não muito importante, acabou por dar à série uma das personagens mais controversas e interessantes. Jinkama, uma irritadiça e ameaçadora colega de trabalho que usa o seu charme e sex appeal para chegar onde quer. É brilhante a forma como muda totalmente de “pele” e manipula a realidade à sua volta. Apesar de ser bastante perniciosa não podemos evitar simpatizar com ela; isto pela forma como expressa a sua personalidade e, claro, pela relação que acaba por ter com o personagem principal.

De resto, a família do personagem e os restantes personagens provenientes da sua vida “pré-encontro” acabam por mudar sua percepção da sua imagem; essa mudança faz nos acompanhar o reconhecer das suas virtudes e a monstruosa cruzada que acabou por protagonizar.
No que toca à escolha dos actores só posso dizer que não poderia ser mais apropriada, são expressivos, profissionais e estimulantes. Fazem a série fluida e constantemente tocante ou risível. A forma como Akihabara é retratada visualmente denota-se esclarecedora e pormenores como a anime favorita do protagonista, ou o clip introdutório estão bem conseguidos e são coerentes com o todo.

Em conclusão, Densha Otoko é uma série bem trabalhada, que expõe com sucesso a história na qual foi baseada. Mantêm-se-lhe fiel apesar da elaboração artificializada pelos realizadores. Todos os elementos, excepção talvez à abordagem feita à protagonista feminina, acabam por dar mais naturalidade ao resultado final e exponenciar a carga emocional original tornando a nossa envolvência inevitável.
1 - Otaku: termo japonês que descreve indivíduos com um interesse obsessivo, normalmente por anime, manga ou bens de consumo relacionados.
2 - Akihabara: bairro de Tóquio com um importante comércio de bens electrónicos, adicionalmente é a "meca" da sub cultura otaku. Tem numerosas lojas relativas a manga, anime, jogos, maid cafes e afins.