segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Conversa casual

Vou andando tranquilamente pela rua, o tempo está cinzento, mas não me importa porque tenho um objectivo. Devo seguir a rua até ao seu fim e depois virar à esquerda. A senhora simpática na tenda disse-me também que depois devo apanhar o elevador para o 5ºE, não esquecendo de dar gorjeta ao porteiro que é um pouco susceptível. Por fim devo entrar na sala do senhor de óculos, pois ele vai me indicar para onde devo seguir.
Segundo me dizem devo seguir para onde irão falar comigo e apontar-me uns quantos caminhos no mapa, ilustrados cada um com a sua cor. Verde, amarelo, azul e até laranja segundo me consta. Nesse momento e só nesse momento é que devo escolher o caminho que quero, mas nessa altura dizem-me que é um caminho perigoso e que se seguir o outro acolá terei a oportunidade de andar numa bonita estrada, com um bonito descapotável, ao mesmo tempo que um notário segue-me no banco de trás. Regista tudo o que penso.

Olho para ele, mantém-se quase imóvel, de chapéu preto, olhos vazios e uma face rígida. Veste um fato preto e uma camisa branca. O mais comum possível. Neste momento aproximo-me da curva indicada a laranja no mapa, segundo me avisaram devo tomar aquele caminho para um futuro risonho e segundo os padrões da vivência em sociedade.
Em vez disso decido virar para o outro lado, o notário abre ligeiramente os olhos e solta um sorriso... pois a estrada continua direita e confortável, o descapotável continua com bastante combústivel e o notário parece estar a lidar com esta minha decisão como se ela fosse habitual. E aí percebo. Era exactamente esta a sua ideia desde o início. De facto estes dois caminhos apenas existem porque querem que exista. Existe quem vá imediatamente pelo caminho laranja e quem tente mudar, mas de facto não consegue mudar, pois essa escolha já foi feita por nós antes. Eu devia desistir agora, mas ainda não é altura para isso. É muito cedo. Não posso desistir agora só porque o raio do notário sorri e o carro anda bem. Por isso saio da estrada e sigo pelo campo e por cima das pedras, o notário pára de rir e começa a escrever mais depressa.

Começo a soltar gargalhadas, a emoção não me deixa parar, começo a acelarar e a aumentar a velocidade, o conta kms já quase não tem por onde ir, o notário escreve, escreve, escreve, muda de página, escreve, escreve, escreve, muda de página e continua assim à mesma velocidade a que eu ando, as árvores passam apenas a manchas verdes e a minha adrenalina não pára de crescer, consigo sentir o sol a sair das nuvens e a bater na minha cara... e o notário não tem sequer tempo para o sentir, que idiota. Não páro de rir na cara dele e sinto-me invencível, convencido e seguro. Até fechar os olhos.

Senhor - Onde pensa que vai?
Eu -Como assim? Quem é você?
Senhor -Onde pensa que vai?
Eu - A lugar nenhum senhor. Apenas vou...
Senhor - A onde?
Eu - Mas... a lugar nenhum senhor.
Senhor -Lugar nenhum? Isso não é nenhum lugar que conheça ou que conste nos mapas. Fale correctamente.
Eu -Mas eu estou a falar correctamente. Você é que não me percebe... onde está o notário?
Senhor -Deveria estar aqui?
Eu -Sim, devia. Ou não...sinceramente não sei.
Senhor - Sim ou não? Não está a fazer muito sentido pois não? Porque quer falar com o notário?
Eu -Eu não quero falar com ele...
Senhor -Mas então porque o procura? É por isso que está de viagem?
Eu -Não o procuro... estou de viagem...porque tenho que ir ao encontro de alguém.
Senhor -Quem?
Eu -Alguém que não é o senhor!
Senhor -Mas só eu é que existo. Que caminho segue você? Porque não virou na curva laranja? Ou na outra ao lado?
Eu -Deveria? Eu virei. Eu acho que virei. Mas estava cá o notário, ele registou tudo ele pode provar que eu virei! Procure-o!
Senhor -Mas se você virou numa dessas curvas não deveria estar aqui pois não? Você sabia que matou uma pessoa?

Eu -Eu? Eu nunca faria tal coisa. Apenas conduzia.
Senhor - Mas matou uma pessoa. Ela está bem morta. A família está devastada.
Eu - Pode ao menos dizer-me como é que a matei? E quem?
Senhor - Nessa ordem? Matou ao vir por aqui. Era um sujeito neutro. Pobre família.
Eu - Matei ao vir por aqui? Mas isso não faz sentido...como é que se mata só por...
Senhor - Caro senhor, a razão porque encaminhamos as pessoas para um certo caminho não é isenta de sentido. É necessário sabermos para que caminho todos os carros seguem, pois precisamos de saber para onde as estradas vão certo? E existe um certo equilíbrio entre todos os que andam nessa estrada. Todos estão a 10 metros do carro à sua frente e do carro atrás de si. isso serve para que não se afectem mutuamente. Todos têm o seu espaço, o espaço calculado por nós. O espaço necessário para continuarem a sua viagem.
Eu - Continuo sem perceber...como é que matei alguém?
Senhor - Veja se perceba então... você saiu do caminho, para algures correcto? Deixando assim um espaço de 20 metros entre o carro atrás de si e o que se encontrava à sua frente. O carro que estava atrás de si tentou equilibrar esse espaço, mas não sabia o que fazer com tanto espaço, começou a acelarar e a travar aleatoriamente, os carros atrás desse começaram a imitá-lo e o sentido de espaço para as suas manobras tornou-se frenético e irrequieto. Subitamente, todos os carros que se encontravam atrás de si confundiram-se e começaram a agir de uma forma violenta uns com os outros, desejando o espaço dos outros. Portanto, o que aconteceu é que um deles foi de encontro a outro que por sua vez se despistou. Embatendo contra uma árvore. O condutor morreu.

Eu - Então eu matei?
Senhor - Então, por mais que você percebesse, até certo ponto, o que estava a fazer, aqueles que iam atrás de si não estavam preparados para a sua mudança brusca. Você danificou todo o sentido e tivemos sorte em só ter ocorrido uma morte.
Eu - Mas isso não faz sentido.
Senhor - Acredite... faz todo o sentido.
Eu -E como vai a estrada agora?
Senhor - Já a equilibrámos, agora o espaço é de 11 metros entre os carros.
Eu - Por mim?
Senhor - Não pense demasiado nisso.
Eu -No que deverei pensar então? Você diz-me que mudei algo.
Senhor - Digo-lhe que matou uma pessoa. Compensa?
Eu - Como posso saber... qual é o valor de uma pessoa?
Senhor - Depende...
Eu - Como depende? Uma pessoa é uma pessoa.
Senhor - Para alguns... tenho que ir andando. Perceba uma coisa, você matou uma pessoa porque decidiu ir contra algo que foi programado por pessoas superiores a si. Não tente perceber o sistema pois o sistem já o percebe a si. E é somente este tipo de relação que deve existir. Podes voltar para a estrada ou podes ficar no nada, que é para onde ias.
Eu -O que há no nada?
Senhor - A ausência de tudo. É perigoso. Nada está planeado. Nada está controlado. É um pandemónio.
Eu - É uma folha branca. Eu vou para lá.
Senhor - Decerto. Tente não pôr a sua estrada muito perto da nossa. Mas também não muito longe, senão teremos problemas. Espero que perceba.
Eu -Porque não...

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